sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

O Escafandro e a Borboleta: Viver ou Não?


Era precisamente aquele filme que me estava predestinado, naquela tarde fria e apática, onde depois de uma maratona de trabalho profissional, necessitava de algo diferente que fosse para ler ou para ver, mas não encontrava.

Tinha gravado o filme “O Escafandro e a Borboleta”; abri a televisão e enquanto decorriam as primeiras cenas do filme, tentei recordar o que na minha memória ficou da leitura desse mesmo livro efectuada anos antes, mas a recordação era vaga: Jean-Dominique Bauby, editor da revista Elle terá sofrido um derrame cerebral, acordando vinte dias depois, com síndroma de Locked-In, incapaz de comunicar a não ser através de movimentos com o olho esquerdo.

O filme sem dúvida emocionou-me mais que o livro; a sensibilidade e a luta do Escafandro, através do seu corpo imobilizado pela paralisia generalizada, com a Borboleta, ou seja, a sua imaginação que por meio de movimentos das pálpebras e do olho esquerdo conseguiu com uma persistência louvável, ter a força suficiente para conseguir a comunicação necessária para poder escrever um livro, que por ser de uma humanidade chocante nos toca no coração e por isso nos perturba emocionalmente.

Descreve momentos felizes, patenteia a adaptação a uma cadeira de rodas, ouvindo mas nem sempre conseguindo transmitir o que lhe apetece dizer, consequência definitiva do seu estado, que só não é vegetativo porque se sabe que através de um olho, naquele corpo que não mexe, existe uma alma que consegue orientar o seu ser, mas mais ainda o seu querer.

Existem Forças que são ainda hoje inexplicáveis,

Jean-Dominique, após a confirmação da edição do seu livro tem uma pneumonia e morre dez dias depois. O seu objectivo fora cumprido, dizer à sociedade que para além da síndrome de Locked-In, existe vida, que poderá ser vivida de forma diferente encarando os problemas de forma mais feliz, confrontando a realidade do dia-a-dia com alegria e motivação com o intuito de tudo na vida poder ser mais leve, suave e aprazível.

Fica-me a dúvida que à qual não consigo responder, ou seja, que Força é essa que nos motiva para atingir um determinado objectivo e que a partir daí pode-se desligar de nós próprios tal como nós desligamos um simples interruptor, apagando-se por vezes totalmente do nosso corpo, nem que seja através do aparecimento da morte?



sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Absolvição

Eram muitas as dores que sentia, incomodativas, que me limitavam a locomoção e impossibilitava alguns movimentos que fazem parte da nossa normalidade e que inconscientemente repetimos centenas ou milhares de vezes durante a actividade diária.

Decidi por recorrer ao médico de família, como todos deveremos fazer quando algum dilema de saúde surge. Estava frágil e incapacitado pela dor e pela dificuldade de me mobilizar e impotente pela debilidade psíquica que a mesma provoca.

Depois de uma história clínica cuidadosa, fui observado, medicado e foram-me pedidos alguns exames entre os quais um Tomografia Axial Computadorizada.

Lá fomos, porque não conseguia conduzir, pela estrada que não parecia ter fim, sinuosa ou tortuosa, estreita, mas único refugo para evitar os custos que se vão adicionando por cada pórtico nas auto-estradas que todos continuaremos a pagar indefinidamente.

Finalmente a capital, que tudo de bom parece ter, mas que da confusão de trânsito não se consegue livrar, mas enfim, não foi esse o objectivo que me direccionou, pelo que com alguma dificuldade lá cheguei ao local pretendido.

Entrei num aparelho com a forma circular que mais parecia um donut, onde me deitei numa maca e aí deslizei provavelmente para a zona onde me iriam ser emitidas as radiações, que alguma coisa poderia descobrir neste corpo até ao momento são e sadio.

Ouvi uma voz de timbre metálico, que de algum lado parecia conhecer, mas rapidamente me lembrei do meu GPS; ia orientando os movimentos respiratórios, assimilando os conselhos, mas o tempo passava com dificuldade, de maneira que minutos pareciam horas, talvez por reflectir que alguma coisa menos boa se estaria a passar, porque a noção é que quando tudo corre bem, nada é tão demorado e tudo se torna mais fácil de ser assimilado.

O círculo volta-se a abrir, a maca torna a deslizar, mas quando pensava ter terminado o exame, sou confrontado por um enfermeiro que delicadamente pede para poder perfundir um produto, contraste, necessário para aclarar algumas dúvidas existentes, mas não me transmitiu quais.

A desesperança,

O rebuliço interior, o quase enlouquecimento, o reflectir sobre tudo e sobre nada, desde o início que somos vida ou da vida fazemos parte, até quando e como ela terminará já que alguma coisa de grave existirá, pois um contraste após tanto tempo para observação destes meus órgãos deixam de ser um meio, mas passam a ser um fim, que brevemente me irá ser transmitido.

A nossa existência passada, nos momentos de aflição, parece-nos curta, errante nos actos passados, ausente das coisas boas que teremos vivido, tanta coisa de diferente que deveríamos ter feito, o tempo que viveremos, sem tempo, porque o mesmo se diluirá nas idas e desavindas para o meio hospitalar para as sessões de quimioterapia ou de radioterapia, ou sabe-se lá mais o quê, deixar-me-ão desde já “morto” para o tempo que irei durar.

Terminou o exame; durou uma hora e meia, suficiente para perceber o que desde já não estará disseminado por um corpo metafórico como sejam as peças de um relógio, que passou a ser disfuncional.

Finalmente o resultado do julgamento do colectivo dos juízes que perante as provas evidentes decidiram:

Estou absolvido, não sei no entanto até quando…


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

O Colapso da Amizade


Naquela noite invernal, friorenta, escura, com a lua vedada por nuvens cerradas que ameaçavam chuviscos, fomos informados que nos deveríamos dirigir rapidamente para uma aldeia, ainda longínqua do local da partida, o que de imediato cumprimos.

Arrancámos em alta velocidade, através de estradas de mau piso, esburacada, com alcatrão facilitando o movimento oscilante que bem se sentia nos assentos, baloiçante pela velocidade elevada, curvas sinuosas pelo caminho fora, até que chegámos ao local que nos havia sido indicado.

Deparámos com um mundo semelhante a determinados filmes que nos dão imagens artificializadas de cenas estudadas e mecanizadas: Num “mundo” escuro, abrilhantado por um holofote que acompanha a nossa carga, verificámos a presença relativamente perto de um ser humano, sentado num carrinho de mão, em pânico, com um semblante de dor e sofrimento, ensanguentado nas mãos, na roupa e de mais perto verificámos que se encontrava mais “colorido” por ter coloração mais expressiva num dos membros inferiores.  

Junto da porta da moradia da quinta, alguém decidiu quebrar o gelo, não só da temperatura nocturna, como também do filme em cena, afirmando, que ouviu um barulho, pensando ser um javali, pelo que decidiu ir buscar a espingarda, resolvendo disparar para o local de onde os ruídos zumbiam para os ouvidos.

Mas mais afirmava: “É meu amigo, ainda hoje durante a tarde estivemos a jogar às cartas; bem me podias ter pedido as laranjas, em vez de mas vires roubar, que eu preferia dar-tas todas”.

Foi uma história que por ser real não a esqueci, pelos seus valores morais, nomeadamente pelo sentido ou significado de se ser amigo e por isso mesmo poder haver a liberdade, como neste caso, de se poder dar um tiro “cúmplice” àquele que pese a dedicação de andar a apanhar laranjas é atingido por uma bala.

Pensava eu que os amigos, se na realidade existem, então estimam-se, ajudam-se, mesmo nos maus momentos, até se podem insultar, mas chamar javali como pretexto para se poder dar um tiro não será muito apropriado, nem oportuno nos dias que correm, e na época que vivemos.

Sempre me ficou no entanto a dúvida se a cena observada, não terá tido a ver com algo que se terá passado durante o jogo das cartas: Terão os mesmos na euforia do jogo, sob efeito do álcool, talvez já de sabor amargo, iniciado uma conversa do género, “acredita que se te apanhar a roubares-me uma laranja no meu quintal dou-te um tiro e mato-te! E a outra voz, já não serena, sim exaltada a exclamar: Isso é o que veremos!”.

A amizade talvez seja também isto mesmo, chamar nomes impróprios, inadequados para a altura, como seja javali ou outro qualquer ao amigo, que de javali nada terá, senão apenas a vivência da proximidade, do companheirismo, da camaradagem, como forma de convívio que se torna essencial, para se poder passar o tempo da melhor forma possível, mas que na realidade, tudo se poderá tornar diferente, dependendo do interesse conformado ou inconformado do significado que cada um tem da palavra amizade.

Nesta história percebeu-se a coragem do confronto de duas pessoas, um a chamar javali a outro e sem pejo nem decoro, de imediato a decidir dar-lhe um tiro, tal como se estivesse presente numa montaria de caça e abate ao javali, o outro a pôr em questão essa possibilidade, roubando as laranjas sem qualquer pudor; estranho o significado de amizade que se entende por este mundo fora.