Naquela
noite invernal, friorenta, escura, com a lua vedada por nuvens cerradas que
ameaçavam chuviscos, fomos informados que nos deveríamos dirigir rapidamente
para uma aldeia, ainda longínqua do local da partida, o que de imediato cumprimos.
Arrancámos
em alta velocidade, através de estradas de mau piso, esburacada, com alcatrão
facilitando o movimento oscilante que bem se sentia nos assentos, baloiçante pela
velocidade elevada, curvas sinuosas pelo caminho fora, até que chegámos ao
local que nos havia sido indicado.
Deparámos
com um mundo semelhante a determinados filmes que nos dão imagens
artificializadas de cenas estudadas e mecanizadas: Num “mundo” escuro,
abrilhantado por um holofote que acompanha a nossa carga, verificámos a
presença relativamente perto de um ser humano, sentado num carrinho de mão, em
pânico, com um semblante de dor e sofrimento, ensanguentado nas mãos, na roupa
e de mais perto verificámos que se encontrava mais “colorido” por ter coloração
mais expressiva num dos membros inferiores.
Junto
da porta da moradia da quinta, alguém decidiu quebrar o gelo, não só da
temperatura nocturna, como também do filme em cena, afirmando, que ouviu um barulho,
pensando ser um javali, pelo que decidiu ir buscar a espingarda, resolvendo
disparar para o local de onde os ruídos zumbiam para os ouvidos.
Mas
mais afirmava: “É meu amigo, ainda hoje durante a tarde estivemos a jogar às
cartas; bem me podias ter pedido as laranjas, em vez de mas vires roubar, que
eu preferia dar-tas todas”.
Foi uma
história que por ser real não a esqueci, pelos seus valores morais,
nomeadamente pelo sentido ou significado de se ser amigo e por isso mesmo poder
haver a liberdade, como neste caso, de se poder dar um tiro “cúmplice” àquele que
pese a dedicação de andar a apanhar laranjas é atingido por uma bala.
Pensava
eu que os amigos, se na realidade existem, então estimam-se, ajudam-se, mesmo
nos maus momentos, até se podem insultar, mas chamar javali como pretexto para
se poder dar um tiro não será muito apropriado, nem oportuno nos dias que
correm, e na época que vivemos.
Sempre
me ficou no entanto a dúvida se a cena observada, não terá tido a ver com algo
que se terá passado durante o jogo das cartas: Terão os mesmos na euforia do
jogo, sob efeito do álcool, talvez já de sabor amargo, iniciado uma conversa do
género, “acredita que se te apanhar a roubares-me uma laranja no meu quintal
dou-te um tiro e mato-te! E a outra voz, já não serena, sim exaltada a exclamar:
Isso é o que veremos!”.
A amizade
talvez seja também isto mesmo, chamar nomes impróprios, inadequados para a
altura, como seja javali ou outro qualquer ao amigo, que de javali nada terá,
senão apenas a vivência da proximidade, do companheirismo, da camaradagem, como
forma de convívio que se torna essencial, para se poder passar o tempo da
melhor forma possível, mas que na realidade, tudo se poderá tornar diferente,
dependendo do interesse conformado ou inconformado do significado que cada um
tem da palavra amizade.
Nesta
história percebeu-se a coragem do confronto de duas pessoas, um a chamar javali
a outro e sem pejo nem decoro, de imediato a decidir dar-lhe um tiro, tal como
se estivesse presente numa montaria de caça e abate ao javali, o outro a pôr em
questão essa possibilidade, roubando as laranjas sem qualquer pudor; estranho o
significado de amizade que se entende por este mundo fora.
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